Cachorro ingressa na Justiça pedindo indenização a pet shop por danos físicos e psicológicos

Com base em lei estadual, que define animais como sujeitos de direito, advogado tenta que cão Boss seja reconhecido como parte autora em processo

| JUSBRASIL


Boss é um cão da raça shih tzu, de 11 anos, que está no centro de uma discussão jurídica surpreendente no Rio Grande do Sul: está pleiteando na Justiça o direito de ser autor de uma ação de reparação de danos materiais e morais contra uma pet shop.

 

O cão alega ter sofrido prejuízos físicos e psicológicos decorrentes de mau atendimento em uma sessão de banho. Enquanto estava sob os cuidados da pet, teria sofrido uma fratura no maxilar, que o fez precisar de uma cirurgia para colocar uma placa metálica com parafusos. Antes mesmo de discutir seu direito a ressarcimento junto ao estabelecimento comercial, o desafio do animal é ser aceito como parte no processo, com base no entendimento de que animais de estimação são sujeitos de direitos.

 

A ação tramita na Vara Cível do Foro Regional da Tristeza, em Porto Alegre. Apresentado na petição do advogado Rogério Santos Rammê como ” autor não-humano”, Boss pode se tornar o primeiro animal a se beneficiar do que consta em lei estadual aprovada em janeiro no Estado. É com base nessa legislação — que define animais domésticos de estimação como sujeitos de direitos despersonificados, devendo gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa —, que Rammê ingressou com uma ação tendo Boss e seus donos como autores. O casal tutor do cachorro, que preferiu não se identificar neste momento, também consta como representante legal do animal perante ao Judiciário, claro, já que ele não tem capacidade civil e processual para isso.

 

Mas, afinal, que diferença faz a ação ter como autor também o cachorro e não só seus tutores? Faz toda a diferença, explica o advogado, especialista em direito ambiental e animal:

— Sendo parte no processo todo, o resultado positivo da demanda será revertido em proveito do próprio animal. A indenização não vai para o tutor, para uma ONG ou para um fundo qualquer. Vai para o animal, para custear seu tratamento, sua subsistência e a reparação de seus direitos fundamentais violados. Ela será, claro, administrada pelo representante do animal, mas este terá que prestar contas à Justiça da utilização da renda em prol exclusivamente da vítima não-humana.

 

Rammê, aliás, faz um alerta: não é correto usar o termo “dono”, pois isso coloca o animal na condição de coisa ou bem, o que é vedado pela lei. O termo adequado é tutor.

 

Na ação, o advogado pede indenização da pet para Boss por danos físicos — sofreu a fratura e, em decorrência da cirurgia, ficou com um defeito no maxilar — e morais. Também há pedido pelos danos enfrentados pelo casal, abalado com o sofrimento do cão de estimação e com gastos extras para o atendimento médico do animal. Para amparar a tese de que animais são sujeitos de direitos, o advogado discorreu na petição sobre normas internacionais e constitucionais.

 

Também destacou argumentos defendido pelo juiz federal Vicente de Paula Ataíde Junior, que é pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia e coordena o Programa de Direito Animal da Universidade Federal do Paraná.

 

— A lei diz que o animal é sujeito de direito e todo sujeito de direito tem direito constitucional de acesso à Justiça, capacidade de ser parte — destaca o juiz.

 

Por meio do programa que coordena, Ataíde Junior monitora ações como a de Boss. Segundo ele, são cinco no país, sendo que a de Boss é a primeira no RS:

 

— Tudo é muito novo. Além da lei gaúcha que é de 2020, só há legislação com essas disposições em Santa Catarina e na Paraíba, que são de 2018. Isso vai exigir que juízes estudem, será uma revolução em vários aspectos.

 

O pedido de reconhecimento de Boss como autor do processo foi negado pela Justiça, que determinou a exclusão do cachorro do polo ativo da ação. Rammê está recorrendo junto ao Tribunal de Justiça.

 

“Negar a capacidade de ser parte a quem tem direitos subjetivos legalmente assegurados significa esvaziar completamente a eficácia desses direitos. Cabe ao Poder Judiciário acompanhar esses novos movimentos emancipatórios da sociedade, reconhecendo e garantindo a possibilidade de tutela jurisdicional para a vindicação desses novos direitos, sem discriminações de qualquer natureza, inclusiva a que possa se pautar no pertencimento à espécie humana. Essa é sua missão constitucional”, diz trecho do pedido feito pelo advogado.

 

O QUE DIZ A LEI ESTADUAL Nº 15.434/2020
Art 216: É instituído regime jurídico especial para os animais domésticos de estimação e reconhecida a sua natureza biológica e emocional como seres sencientes, capazes de sentir sensações e sentimentos de forma consciente.

 

Parágrafo único. Os animais domésticos de estimação, que não sejam utilizados em atividades agropecuárias e de manifestações culturais reconhecidas em lei como patrimônio cultural do Estado, possuem natureza jurídica “sui generis” e são sujeitos de direitos despersonificados, devendo gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.

 

TRECHOS DO PEDIDO FEITO À JUSTIÇA

“O autor não-humano busca uma reparação pelos danos físicos e psicológicos por ele suportados, decorrentes da conduta da ré. Assim, considerando que o cão Boss é sujeito de direitos (art. 216, par. único, da Lei nº 15.434/20), com capacidade de ser parte, e tendo sua incapacidade processual suprida pela representação de seus tutores, eventual resultado positivo da pretensão reparatória de Boss será revertido em proveito do próprio animal, com a devida prestação de contas, em juízo, pelos tutores, em prazo a ser fixado por V. Exa”.

 

“Gize-se que muito provavelmente a presente ação é a primeira em que um animal doméstico de estimação, após a instituição desse novo regime jurídico no Estado do Rio Grande do Sul, se apresenta em juízo para buscar uma efetiva tutela jurisdicional diante da violação de seus direitos, bem como para ver reconhecida a sua condição de autor em uma ação judicial”.

 

“Importante destacar que muito embora o ineditismo da situação, a inclusão do cão Boss, animal não-humano, doméstico e de estimação, no polo ativo da presente demanda, assenta-se em base legal expressa. Segundo dispõe o artigo 216, caput, e parágrafo único, da já mencionada Lei Estadual nº 15.434/2020”.

“Essa inovação legal, ainda pouco conhecida por muitos operadores do direito, eleva o estatuto jurídico dos animais domésticos de estimação à categoria de sujeitos de direitos despersonificados e reconhece a natureza biológica e emocional desses animais não-humanos como seres sencientes, capazes de sentir sensações e sentimentos de forma consciente. E MAIS IMPORTANTE: além de reconhecer a natureza jurídica “sui generis” de sujeitos de direitos despersonificados, a legislação estadual do Rio Grande do Sul estabelece que os animais domésticos de estimação devem “gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.”

 

“Seja por uma hermenêutica puramente positivista da legislação vigente, seja por uma interpretação sistemática das normas internacionais e nacionais que tutelam os interesses dos animais não-humanos a uma vida digna e ao não sofrimento psicofísico, requer-se seja reconhecida por V. Exa. a capacidade de ser parte do cão Boss no presente feito, provavelmente o primeiro animal doméstico de estimação que ingressa como autor em uma ação judicial, devidamente representado por seus tutores, perante o Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, após ser reconhecido expressamente por lei estadual como sujeito de direitos”.

 

Com informacoes de Gaúcha ZH e Jusdecisum



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