Entre os que se dedicam a pensar sobre as mudanças no comportamento social em geral, e, em especial, sobre possíveis reflexos de natureza ética e moral, decorrentes da pandemia de Covid-19, há duas correntes antagônicas: a dos que defendem que valores como solidariedade, tolerância e empatia estarão mais fortalecidos, e aqueles que sustentam que a humanidade será exatamente a mesma, em virtudes e defeitos, ao fim da dura provação global.

 

De permeio há os que garimpam fartos exemplos na história e na literatura para afirmar que nas grandes calamidades, como guerras, desastres naturais e epidemias, aflora o que a humanidade tem de melhor e de pior. Para estes, situações extremas em geral levam o ser humano a atitudes de heroica renúncia em favor de seus semelhantes ou ao mais repulsivo individualismo.

 

Porém, enquanto a pandemia do novo coronavírus confirma-se como tragédia humanitária que ainda não chegou ao seu nefasto ápice em nosso país, deixemos para os cientistas sociais e estudiosos do comportamento humano as preocupações acadêmicas quanto à humanidade do futuro pós Covid-19.

 

Por agora nos compete o dever moral e a responsabilidade ética e social de contribuir, como indivíduos e como sociedade, para reduzir os riscos de contágio galopante e as funestas consequências que já se configuravam no meio desta semana em S. Paulo, Rio de Janeiro, Manaus, Recife, Fortaleza e Belém, com sistemas de saúde pública saturados e centenas de vidas perdidas antes de ter acesso a um respirador ou a um leito de UTI.

 

Embora já tenhamos tratado do tema no início do flagelo do novo coronavírus, a entrega absoluta dos profissionais de saúde na guerra sem trégua à pandemia, com muitos deles, à esta altura, postos fora de combate,e outros tantos já tendo sacrificado a própria vida, deixa patente, de forma dolorosa – mas paradoxalmente bela e admirável – que é, sim, plausível ter fé na grandeza do ser humano.

 

A propósito, vale citar o cardiologista Fernando Bacal, diretor científico da Sociedade Brasileira de Cardiologia, que diz em artigo recente:

 

“Heróis, mascarados e uniformizados, em sua grande maioria anônimos, os profissionais da saúde personificam o que de melhor queremos para nosso futuro, buscando o legado bom, diante de um momento tão difícil que vivemos.”

 

Nas trincheiras nem sempre assépticas e esterilizadas quanto deveriam, esses milhares de “mascarados e uniformizados” espantam seus medos e dissimulam suas fragilidades pessoais para travar batalhas intermináveis contra um inimigo invisível e potencialmente letal. E quando resgatam à fúria do patógeno uma vida que esteve sob risco iminente, devolvendo-a ao convívio familiar, celebram como combatentes que estivessem retomado ao inimigo alguém que, capturado por ele, teria a morte como destino.

 

Não há dúvida de que as chamadas atividades essenciais abrigam milhares de outros heróis anônimos: motoristas profissionais, garis, comerciários, policiais, agentes de segurança privada e tantos outros, de cujo trabalho, sempre sob o risco de contaminação, a sociedade depende para subsistir em meio à maior pandemia a assolar a humanidade em mais de um século.

 

Porém, é nos hospitais onde se travam as verdadeiras e decisivas batalhas, que contrapõem a um inimigo pouco conhecido, mas sabidamente agressivo e mortífero, a competência e, sobretudo, a dedicação sobre-humana e a solidariedade extrema do exército de “heróis mascarados e uniformizados”, de que fala Fernando Bacal.

 

Assim, se a polêmica quanto a humanidade estar melhor, igual, ou até pior, ao fim da pandemia não passa de mera futurologia acadêmica, não há dúvida de que a vitória, em algum momento, na luta contra a Covid-19 deixará, como legado extraordinário, como referência histórica perene, o denodo e o sacrifício extremo – inclusive da própria vida em milhares de casos ao redor do mundo –dos profissionais da saúde.

 

É possível dizer, já agora, que em nenhum outro momento da história contemporânea exigiu-se tamanho sacrifício, renúncia pessoal e dedicação acima das limitações humanas de um segmento social ou categoria laboral, como os que agora são impostos, pelas contingências da crise sanitária global, sobre os profissionais da saúde.

 

Se mirar nos exemplos de grandeza humana, de plena e desassombrada dedicação à luta contra um inimigo invisível e perigosamente mortal, demonstrados milhares de vezes ao dia pelos profissionais da saúde ao redor do mundo, a humanidade será pelo menos um pouco melhor após a pandemia.

 

*Iran Coelho das Neves é Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.



 
 
 



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