Açúcar no sangue pode desencadear uma resposta imune mortal à gripe, e possivelmente à COVID-19 - Scientific American Brasil

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Açúcar no sangue pode desencadear uma resposta imune mortal à gripe, e possivelmente à COVID-19 - Scientific American Brasil

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Muitas das pessoas que estão morrendo durante a pandemia de coronavírus parecem estar sendo mais prejudicadas por seu sistema imunológico do que pelo próprio vírus. A infecção pode desencadear uma tempestade de citocinas – um aumento na quantidade de proteínas de sinalização celular que provocam inflamação – que atinge os pulmões, atacando tecidos e potencialmente resultando em falência de órgãos e morte. Mas esse fenômeno não é exclusivo do COVID-19; às vezes ocorre também nos quadros de gripe severa. Um novo estudo busca lançar luz sobre um dos mecanismos metabólicos que ajudam a orquestrar essa inflamação descontrolada.

Há muito tempo os cientistas sabem que as infecções virais podem afetar o metabolismo celular humano, o sistema de reações bioquímicas que provê energia para a atividade das células. No novo artigo, os pesquisadores mostraram que, em camundongos vivos e células humanas, a infecção pelo vírus influenza A – um dos dois tipos que normalmente causam a gripe sazonal – desencadeia uma cadeia de eventos celulares, também chamado de pathway,  que eleva  o metabolismo da glicose. Esse aumento, por sua vez, desencadeia a produção de uma avalanche de citocinas. E, na verdade, é justamente o bloqueio de uma enzima chave envolvida no pathway da glicose pode ser uma maneira de prevenir o desencadeamento dessas tempestades mortais de  citocina, diz  o estudo publicado na semana passada em Science Advances.

Embora a pesquisa não tenha sido focada no novo coronavírus, a equipe diz que provavelmente o mesmo mecanismo ocorre na doença que ele causa, a COVID-19. Essa conexão poderia explicar por que as pessoas com diabetes correm um risco maior de morrer por causa do vírus.

Quando um vírus infecta uma célula, ele sequestra os recursos que ela possui e os usa para fazer cópias de si mesmo, explica Paul Thomas, imunologista do Hospital de Pesquisa Infantil St. Jude em Memphis, Tennessee, que não participou do novo estudo. As células infectadas precisam intensificar  seu metabolismo para repor esses recursos, e as células saudáveis ​​também experimentam uma intensificação, a fim de prepararem  uma resposta imune eficaz, diz ele.

Pesquisas anteriores haviam mostrado que uma infecção por influenza aumenta o metabolismo da glicose, a molécula de açúcar que alimenta a maioria das atividades celulares. E, em trabalhos anteriores, os autores do novo artigo haviam identificado um pathway envolvendo uma proteína de sinalização chamada fator regulador de interferon 5 (IRF5), através do qual  uma infecção por gripe pode levar a uma tempestade de citocinas.

Neste novo  estudo, a equipe revelou, com grande detalhamento do que ocorre em nível molecular, como um pathway  do metabolismo da glicose ativado pela infecção pela gripe leva a uma resposta imune fora de controle. Durante essa infecção, altos níveis de glicose no sangue fazem com que uma enzima chamada “β-N-acetilglicosamina transferase  ligada ao O” (OGT) se ligue ao IRF5 e o modifique quimicamente,  o  em um processo conhecido como glicosilação. Esta etapa permite outra modificação química, chamada ubiquitinação, que leva a uma resposta inflamatória das citocinas.

Os pesquisadores infectaram camundongos com influenza A e depois administraram glucosamina, um açúcar que dá início à cadeia de reações químicas desse pathway  do metabolismo da glicose. Eles mostraram que a adminstração da glucosamina  aumentava a produção de citocinas. Em seguida, eles desenvolveram ratos geneticamente modificados, que não possuíam o gene que permite a produção de OGT. Quando receberam a glucosamina,  estes ratos não desenvolveram uma resposta de citocina em grandes quantidades.

Por fim, os cientistas analisaram o sangue coletado de pacientes com gripe e indivíduos saudáveis ​​em Wuhan, na China, entre 2018 e 2019. Eles descobriram que o sangue dos indivíduos infectados pela gripe apresentava níveis mais altos de glicose e níveis equivalentemente altos de moléculas de sinalização do sistema imunológico, ambos maiors do que os observados nos pacientes saudáveis. Esse resultado apóia ainda mais a idéia de que o metabolismo da glicose desempenhe um papel na infecção por gripe.

Os resultados sugerem que interferir nesse pathway  pode ser uma forma de  prevenir a tempestade de citocinas que é observada na gripe e em outras infecções virais. Tal intervenção precisaria ser feita com cuidado, no entanto, para evitar o desligamento total da capacidade do organismo de combater o vírus.

“Pode ser relevante interferir no metabolismo da glicose usando inibidores químicos e [modular] a produção de citocinas”, diz o coautor do estudo Mengji Lu, do Instituto de Virologia do Hospital Universitário Essen, na Alemanha. “Mas é preciso dizer que o metabolismo energético é essencial para que nossas células imunológicas combatam um vírus. Pode ser importante combinar tratamento antiviral e inibidores metabólicos – suprimindo o vírus e reduzindo a reação imunológica excessiva ao mesmo tempo. '

Um processo semelhante de produção de citocinas descontroladas foi observado no COVID-19, diz Lu. Mas ainda não foram desenvolvidos medicamentos especificamente para combater o vírus SARS-CoV-2, causador da doença,  de modo que “interferir apenas no metabolismo energético poderia resultar na quebra de nossa defesa imunológica e não nos proporcionar nenhum benefício”, diz ele.

Outros pesquisadores elogiam o estudo. “Este artigo faz um bom trabalho ao propor e validar um mecanismo pelo qual as alterações metabólicas podem alimentar respostas inflamatórias”, diz Thomas. Estudos anteriores mostraram, de forma mais geral,  mais amplamente que o metabolismo da glicose desempenha um papel na resposta à infecção pela gripe. Mas este detalha o que está acontecendo no nível molecular e como a interferência nesse processo pode impedir a inflamação descontrolada, acrescenta ele.

As descobertas confirmam o que Haitao Wen, agora professor assistente de imunologia da Universidade Estadual de Ohio, e seus colegas descobriram em um estudo de 2018 da mesma via metabólica usando um vírus de RNA diferente. Um estudo de 2019 de outro grupo também chegou a conclusões semelhantes. Todos os três estudos mostram que a enzima OGT envolvida nessa via é necessária para iniciar a resposta de estresse do hospedeiro a uma infecção viral. “O ponto inicial dessa resposta ao estresse é criar uma resposta imune antipatógena e tentar lutar contra vírus”, diz Wen, que não estava envolvido no novo artigo. “Mas se a resposta inflamatória continuar, ela causará danos colaterais.”

Dado o papel da glicose no caminho, a dieta de uma pessoa poderia afetar sua resposta a uma infecção viral? “Essa é uma pergunta muito boa”, diz Wen. “Neste momento, acho que é muito cedo para fazer um julgamento [sobre] se uma dieta especial pode combater a infecção por vírus”. O que os cientistas sabem é que as pessoas com diabetes tipo 2 são mais suscetíveis a infecções graves da gripe. Mas esse risco não é porque eles têm níveis mais altos de glicose no sangue. A verdadeira razão, diz Wen, é que eles não podem usar a glicose de maneira eficaz – e, portanto, não podem iniciar uma resposta antiviral adequada.

Por fim, a esperança é que, interferindo nessa via do metabolismo da glicose, possamos evitar as tempestades mortais de citocinas vistas em casos graves de gripe ou COVID-19. Mas a equipe de Lu ainda não fez estudos em pessoas. “No momento, não temos dados em pacientes demonstrando o efeito da interferência no metabolismo energético”, diz ele. “É muito cedo para concluir um potencial uso clínico”.



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