O Wycombe confiou em seus pilares e conquistou o acesso inédito à Championship num daqueles contos de fadas do futebol

| TRIVELA/LEANDRO STEIN


Nesta segunda-feira, Wembley serviu de palco ao maior momento da história do Wycombe Wanderers. Pela primeira vez em seus 133 anos de história, o time de Buckinghamshire disputará a segunda divisão do Campeonato Inglês. O acesso inédito à Championship foi conquistado nos playoffs da League One, em decisão contra o Oxford United. Com a vitória por 2 a 1, graças a um gol de pênalti a 15 minutos do apito final, os Blues selaram o feito imenso a um clube que só passou a frequentar a Football League (as quatro primeiras divisões) durante a década de 1990. Além disso, a promoção também premia a recuperação da equipe nos últimos anos, numa história com elementos daqueles contos de fadas mais bacanas que o futebol é capaz de proporcionar.

Limitado às ligas regionais e ao semi-profissionalismo durante um século de existência, o Wycombe chegou à Conference no final dos anos 1980. O time era treinado por Martin O’Neill quando começou a vislumbrar saltos maiores e entrou na Football League em 1992/93, com o acesso inédito à quarta divisão. A partir de então, os Blues variaram entre o terceiro e o quarto nível, chegando mais perto da Championship em 1994/95 – quando, ainda sob as ordens de O’Neill, ficaram a uma posição de disputar os playoffs. Mas, no geral, era uma equipe de campanhas modestas e dinheiro curto.

O Wycombe permaneceu na gangorra entre a terceira e a quarta divisão no início da década de 2010. Foi nessa época que aconteceu seu período de maior baixa na Football League, enquanto tentava se reconstruir, depois que uma associação formada por torcedores adquiriu 100% das ações da agremiação. O clube quase voltou à Conference em 2013/14, terminando uma posição acima do rebaixamento na League Two. Os Blues se safaram graças ao saldo de gols, com uma salvadora vitória por 3 a 0 sobre o Torquay United na rodada final – enquanto o Bristol Rovers, seu adversário direto, perdeu para o Mansfield dentro de casa. Seria um sopro de nova vida que impulsionaria o recomeço.

Desde 2012, quando a Wycombe Wanderers Trust comprou as ações, Gareth Ainsworth assumiu o comando técnico. Jogador dos Blues na época, ele conciliou as duas tarefas até pendurar as chuteiras em 2013 e seguir a carreira à beira do campo. Nem mesmo o risco de queda à quinta divisão diminuiu a confiança em seu trabalho e ele se encarregaria da recuperação do time. Já em 2014/15, um ano após a salvação, o Wycombe quase voltou à League One, mas perdeu a final dos playoffs para o Southend United. A decisão foi traumática, com um gol sofrido nos acréscimos do segundo tempo da prorrogação e a derrota nos pênaltis. Seriam mais três campanhas até que o novo acesso se consumasse em 2017/18, com a terceira colocação na quarta divisão e a vaga direta. Ainsworth seguia à frente da equipe e dava sequência ao processo de reformulação do elenco.

Em 2018/19, o Wycombe cumpriu seu objetivo na League One ao terminar a campanha no 17° lugar, sem riscos de cair outra vez. E o salto na atual campanha seria enorme, a uma equipe que não era exatamente cotada ao acesso. O elenco tinha apenas nove jogadores confirmados no início da pré-temporada, enquanto muitos estavam em processo de renovação. Não foi isso que impediu uma caminhada consistente desde o início da terceirona. Pois esse clima positivo, superando expectativas, se reverteria nos bastidores.

Em outubro de 2019, a Wycombe Wanderers Trust vendeu 75% de suas ações ao americano Rob Couhig, advogado de Nova Orleans e dono de uma equipe de beisebol nas ligas menores da MLB. Pelo desempenho acima do orçamento, os Blues eram vistos como uma boa oportunidade de negócio e até mesmo ex-jogadores cogitaram comprá-lo – incluindo um grupo composto por Ronald Koeman, Dennis Bergkamp, Henrik Larsson e Dirk Kuyt. Ao final, Couhig representava uma escolha mais segura por seus planos e por suas experiências, garantindo um potencial maior de investimento em relação à associação de torcedores.

Neste ínterim, as coisas também davam certo dentro de campo. Wycombe liderou a terceirona por nove rodadas consecutivas durante a virada dos turnos e permaneceu na zona do acesso direto por mais da metade da campanha. A queda de desempenho em fevereiro se combinou com a interrupção do campeonato em março. A três pontos do G-2, os Blues ocupavam a terceira colocação da League One quando o torneio foi encerrado por antecipação, em consequência da pandemia. Coventry e Rotherham United subiram. Mas haveria ao menos uma nova oportunidade com a realização dos playoffs de acesso.

O Wycombe não passou muito aperto para eliminar o Fleetwood Town nas semifinais dos playoffs. Goleou na ida por 4 a 1, perdendo um pênalti, e o empate por 2 a 2 na volta em casa bastou. Já a decisão em Wembley aconteceria contra o Oxford United, algoz do Portsmouth na fase anterior. Logo aos nove minutos, o Wycombe abriu o placar com Anthony Stewart, aproveitando uma cobrança de escanteio de Joe Jacobson que o goleiro Simon Eastwood não conseguiu afastar. Os U’s voltaram pressionando no segundo tempo e empataram aos 12 minutos, em cruzamento fechado de Mark Sykes que encobriu o goleiro Ryan Allsop.

O Oxford ainda tentou a virada, mas Allsop continha as melhores chances dos adversários com ótimas defesas. O Wycombe precisou de paciência até descolar a vitória no final. Aos 34 minutos, Fred Onyedinma foi derrubado na área pelo goleiro Eastwood. Pênalti, que Jacobson converteu no meio do gol. Antes do apito final, Allsop ainda trabalharia em mais alguns arremates dos U’s, com intervenções que confirmariam o acesso dos Blues. A festa tomou o gramado do esvaziado Wembley ao apito final da partida.

Somando o período como jogador, Ainsworth está há mais de uma década no Wycombe. São oito anos apenas como técnico, encarando as mais diferentes realidades e seguindo em frente. A confiança da diretoria no ex-meia se pagou da melhor maneira. Com um orçamento baixo inclusive na League Two, montou uma equipe ofensiva e que não se contenta em esperar os adversários. A continuidade se transformou em façanha, assim como sua capacidade para gerir o grupo de jogadores é elogiada. O treinador até recebeu propostas de clubes maiores nos últimos anos, mas deve seguir o conto de fadas também na segundona.

“É uma sensação incrível. Levar esse clube à Championship é surreal, vai além dos meus sonhos mais insanos. Hoje é o ponto culminante de todo o desejo e coração desses rapazes que estão em campo. Eles entregaram tudo e mais um pouco. Não foi nosso melhor jogo. Foi sempre cauteloso. Meu goleiro fez duas defesas incríveis, eles realmente nos ameaçaram e são um bom time. Mas era nosso destino hoje. Há 25 histórias individuais que terminarão na Championship e estou muito orgulhoso dos rapazes. Eles foram fantásticos”, comentou o treinador, à BBC.

O elenco possui um bom número de jogadores que está no clube desde a League Two. Nove atletas integraram os dois acessos. Um deles é o meia Matt Bloomfield, uma verdadeira lenda do Wycombe. O camisa 10 chegou aos Blues em 2004, trazido do Ipswich com apenas uma partida no time principal, e nunca mais saiu. São 16 anos ininterruptos no plantel, superando as 500 partidas. Nesta campanha, esteve presente em 30 jogos e usou a braçadeira no primeiro tempo em Wembley, antes de ser substituído. Outros decanos são o lateral Joe Jacobson (desde 2014) e o zagueiro Anthony Stewart (desde 2015), autores dos gols contra o Oxford.

Um personagem especial no Wycombe, além destes, é o atacante Adebayo Akinfenwa. O tanque conhecido por seu carisma e também por sua força incomum veio do Wimbledon em 2016, quando muitos davam sua carreira por encerrada. O grandalhão foi herói do acesso em 2017/18, com 17 gols e 14 assistências na League Two. Já na atual campanha, seguiu como artilheiro da equipe. Foram 10 gols e seis assistências na temporada regular da League One, mesmo começando alguns jogos no banco. Nesta segunda, o camisa 20 entrou no segundo tempo em Wembley. E, aos 38 anos, quer estar também na Championship.

Akinfenwa, aliás, deu uma entrevista maravilhosa na saída de campo: “Antes de tudo, quero agradecer a Deus, porque ele tornou possível o impossível. Há quatro anos, eu estava tecnicamente desempregado. Agora, a única pessoa que pode me chamar no WhatsApp é Klopp, para que a gente comemore junto! A vida no futebol é sobre opiniões. Muitos deram sua opinião sobre mim, e era a opinião deles. Espero que minha história mostre que a única opinião que importa é a que você tem sobre si mesmo. Tive sorte e fui abençoado por encontrar um técnico e jogadores que acreditaram em mim, por isso estamos aqui hoje. E vou dizer para as pessoas aí do outro lado: o Wycombe está na Championship!”.

Nesta temporada, o Wycombe recorreu bastante a jogadores emprestados por clubes de divisões acima. Deve ser uma estratégia útil também na Championship, considerando as limitações no mercado provocadas pela pandemia. Os investimentos não serão muito abundantes para incrementar o elenco, mesmo com o novo dono, mas a sequência do trabalho feito pelos Blues permite acreditar que as contratações não serão tão importantes assim. A um time supera barreiras na base da confiança e da continuidade, permanecer na segundona durante a próxima temporada é um objetivo palpável – quem sabe, para novos avanços depois disso. Por tudo o que se viveu em Wycombe nesta década, a equipe merece um desejo de boa sorte. Jogarão ainda mais como azarões, mas com todo prazer.



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