O dia em que o talento de Maradona sepultou a Era Dunga e de Lazaroni na Copa de 1990

| TRIVELA/FELIPE LOBO


A Copa do Mundo de 1990 tem diversos rótulos colados nela, especialmente por nós, brasileiros. A Copa da retranca, a Copa do defensivismo, dos três zagueiros. Até o Brasil jogou com três zagueiros, algo difícil de imaginar até então. A Copa de 90 teve muito do carisma que veríamos em 94 depois, mas com uma pecha de um futebol truncado.

Curiosamente, dois dos representantes de um futebol mais ofensivo acabaram demolidos na Copa, por motivos diferentes. a Holanda, campeã europeia, ficou pelo caminho com um desempenho muito ruim em campo. O Brasil, apostando em um esquema à europeia da época, foi mais defensivo, mas caiu cedo para os padrões da Seleção.

Lazaroni foi o técnico e arcou com grande parte da responsabilidade pelo fracasso. Também porque ele puxou para si essa responsabilidade. Foi ele quem refutou o que se viu no Brasil de 1982 e 1986 para aderir a um estilo mais condizente com o que ele achava que seria melhor na época. Muitos times usaram os três zagueiros, mas eram modelos bem diferentes do Brasil. O Brasil foi um dos poucos a usar três zagueiros mesmo, sem funções extras, ainda que todos eles fossem de altíssimo nível. O líbero, como tanto se falava, nunca existiu no esquema de Lazaroni.

O jejum pela falta de um título mundial começava a pesar. Desde o time mágico de 1970, o Brasil não conseguia erguer a taça. Se questionava tudo, como é padrão. Lazaroni, vendeu bem o seu peixe de modernidade. Foi para a Seleção, um trampolim para o futebol italiano, na Fiorentina, e teve uma carreira longa como técnico. Aquela Copa, porém, teria um outro nome marcado. E muito por culpa do próprio Lazaroni.

Dunga era jogador da Fiorentina, que seria o time de Lazaroni depois. Infelizmente para Dunga, o técnico o usou como exemplo do que deveria ser o novo Brasil, o novo jeito de jogar do time. Volante aguerrido, que tinha um bom passe e um jogo duro no meio-campo, Dunga era conhecido por ser sempre um jogador esforçado, persistente e que tinha, sim, seus dotes técnicos.

Não foi sua culpa ser usado como exemplo. Ele, porém, tomou para si todas as críticas. A chamada Era Dunga durou 35 dias. Começou quando Lazaroni declarou isso, em 20 de maio de 1990. Terminou naquele fatídico 24 de junho, na derrota para a Argentina que eliminou o Brasil na Copa.

“Pragmatismo sem gols do Brasil acaba derrotado por Maradona'. A manchete era capa do jornal Folha de S. Paulo, que ainda trazia uma foto de Maradona com a camisa da seleção brasileira. Ele tinha trocado com Muller e ainda vibrava com a vitória, que passou pelos pés dele com o passe para Caniggia marcar o único gol do jogo, naquele 24 de junho de 1990. Uma vitória por 1 a 0 que encerrou a participação brasileira na Copa do Mundo realizada na Itália, da qual o Brasil, como quase sempre, era um dos favoritos. Foi o pior resultado desde 1966, quando a Seleção caiu ainda na primeira fase.

Na parte de dentro do jornal, no caderno especial da Copa, a manchete era ainda mais dura: “Arte de Maradona enterra pragmatismo de Lazaroni'. A seleção brasileira chegou às oitavas de final com a desconfiança de um time que que não engrenava, apesar de classificar-se com alguma folga. Os dois países chegavam àquela Copa de formas diferentes, mas carregando o favoritismo que lhes era natural. O caminho até ali foi muito diferente e, claro, teve repercussões bem diferentes.

O problema foi que a Argentina vinha aos trancos e barrancos, começou mal a Copa e acabou passando só em terceiro no seu grupo, caindo justamente no caminho do Brasil. Tempos que a Copa do Mundo com 24 seleções permitia surpresas assim no cruzamento. Camarões, de Roger Milla, foi o líder do Grupo B, com a Romênia, de Gheorgi Hagi, em segundo. A Argentina passou com apenas uma vitória, sobre a União Soviética, depois de perder de Camarões na estreia, vencer os soviéticos na segunda rodada e empatarem com a Romênia no terceiro jogo.

A trajetória do Brasil foi mais constante nos resultados, nem tanto nas atuações. O Brasil estreou vencendo a Suécia por 2 a 1, com dois gols de Careca; venceu a Costa Rica por um magro 1 a 0 e finalizou a fase de grupos com outra vitória magra por 1 a 0 contra a Escócia, nos dois jogos com gols de Muller.

A dupla de ataque era uma das questões do time que foi à Itália. Romário já era badalado, mas chegou machucado para o Mundial. Lazaroni escolheu colocar em campo Muller com Careca, dois jogadores que vinham fazendo sucesso na Itália. Bebeto, que vinha jogando muita bola também, acabou no banco. Romário foi para o sacrifício, chegou a ser titular na partida contra a Escócia, mas não conseguiu ir até o fim. Foi no lugar dele que entrou Muller, que acabaria fazendo o gol da vitória naquele jogo.

Foi assim que os dois times chegaram àquelas oitavas de final em Turim, onde o Brasil tinha ficado sediado em toda primeira fase. A Argentina tinha estreado em Milão, em San Siro, mas jogou os outros dois jogos da primeira fase em Nápoles, onde Maradona era rei.

O técnico Sebastião Lazaroni era um novato. Tinha 39 anos, pouco a mais que alguns dos seus comandados. Veio com o respaldo de Eurico Miranda, que tinha se tornado muito influente na CBF do então novato presidente Ricardo Teixeira.

O treinador introduziu o sistema com três defensores e o líbero, algo que tinha se tornado comum no futebol europeu. Deliberadamente, o time tinha o objetivo de ser mais competitivo a partir de um sistema defensivo mais sólido. Supostamente.

“Em 1982 e 1986, o Brasil jogava bonito e o pessoal pedia mais competitividade. Agora que o time é competitivo, o pessoal pede mais espetáculo. A mim cabia decidir e eu decidi jogar como estão jogando todas as outras 23 seleções', disse Lazaroni na véspera do jogo contra a Argentina.

Um pragmatismo que reforça a dualidade que tanto vemos por aí entre futebol bonito x futebol competitivo, como se fossem opostos e impossíveis de estarem juntos. Uma releitura que faz pouco sentido diante do que se viu: alguns dos maiores times da história eram espetaculares e competitivos.

Careca e Maradona eram companheiros de Napoli, de forma encantadora. Aliás, uma frase curiosa é que Careca chegou a falar sobre o modo de jogar do Brasil de modo crítico, em entrevista para a Folha. “Daqui a pouco, até o Taffarel vai marcar', disse o camisa 9. Uma espetada no técnico, que jogava de um jeito que os atacantes se sentiam em um latifúndio improdutivo. “Se o Zico ainda jogasse…”, chegou a comentar, brincando (ou não) Careca, em declaração ao Globo.

As duas seleções tinham se enfrentado um ano antes, pela Copa América, realizada no Brasil. A seleção brasileira venceu por 2 a 0, gols de Bebeto e Romário, no quadrangular final. Os brasileiros venceriam o torneio, quebrando um jejum de 40 anos sem a taça. Maradona já era o melhor do mundo, a Argentina já era campeã do mundo, então a vitória significou muito. Copa do Mundo, porém, é outra coisa.

Havia a possibilidade do jogo terminar empatado e, depois de prorrogação, ir para os pênaltis. Careca chegou a dizer: “Pedir para cobrar que eu não vou', disse Careca. Lazaroni, no Jornal do Brasil, brincou. “É uma situação tão especial, tão difícil para quem cobra, que é uma responsabilidade para se colocar nos pés de um presidente. Na Granja Comary, que cobrou o pênalti foi o Presidente Collor. E cobrou bem, fez o gol”.

“Aqui, isso é para ser resolvido por Careca, Branco, Valdo, Jorginho, Muller ou Ricardo Gomes e Dunga. Escolho na hora, observo os que estiverem mais tranquilos para fazer as cobranças. Só acho que não haverá necessidade disso contra a Argentina', comentou o treinador do Brasil.

A Argentina, então campeã mundial, com o melhor jogador do mundo, Maradona, era uma das favoritas, mas as derrapadas na primeira fase fizeram com que o time albiceleste mudasse o seu rumo para a fase eliminatória. Pode parecer estranho, mas na véspera da partida, Maradona deu uma demonstração de humildades ao falar sobre o rival. “Vamos dar tudo, mas seria um milagre ganhar do Brasil', afirmou o craque, então com 29 anos, capitão argentino, melhor do mundo e da seleção que era a campeã do mundo, mas fazia uma Copa cambaleante.

Carlos Bilardo também tinha um pragmatismo forte, mas tinha o lastro do título mundial de 1986. E tinha Diego Maradona. Mesmo assim, o embaixador da Argentina no Brasil, José Manuel de La Sota, escreveu na Folha sobre o jogo criticando o excesso de defensivismo dos dois times que se enfrentariam. “O melhor que poderia acontecer, amantes do bom futebol – brasileiros e argentinos -, é chegar a ter uma seleção em que joguem juntos Careca e Maradona, com um técnico que mande os jogadores para frente. Talvez, em um futuro não muito distante, isso aconteça'.

O Brasil foi escalado no seu 3-5-2 que vinha sendo habitual. Taffarel; Ricardo Rocha, Mauro Galvão e Ricardo Gomes; Jorginho, Dunga, Alemão, Valdo e Branco; Muller e Careca. Romário e Bebeto, ambos machucados, sequer ficaram no banco de reservas.

A Argentina foi a campo escalada por Bilardo com: Sergio Goycoechea; Juan Simón, Pedro Monzón e Oscar Ruggeri; José Basualdo, Pedro Troglio, Ricardo Justo, Julio Olarticoechea e Jorge Burruchaga; Diego Maradona e Claudio Caniggia.

Tecnicamente, o Brasil tinha um time superior, mais técnico em todas as posições. Só perdia mesmo com Maradona, mas o elenco era bastante qualificado. Faltava engrenar. Não havia mais tempo para esperar: o jogo era eliminatório e o Brasil tinha pela frente a arquirrival Argentina.

Logo no começo do jogo, Careca partiu para cima do marcador, passou por Simón, tinha a chance de finalizar e preferiu um outro corte, aí a marcação chegou e a bola acabou indo para escanteio. Na cobrança, a bola passou fechada e levou perigo. Mas a Argentina também levou perigo. Maradona, em um raro momento de liberdade, colocou em profundidade para Caniggia, mas a arbitragem marcou impedimento enquanto ele tocava para o gol e mandava para o fundo da rede. Um gol que não valeria.

O Brasil começou pisando no acelerador. Alemão bateu de fora da área e Muller finalizaria um pouco depois. Ambos os chutes foram muito longe do gol, mas o Brasil chegava, pressionava e tentava dar ritmo. O Brasil levaria ainda mais perigo. Branco cruzou da esquerda para a área e Dunga, de cabeça, tocou com perigo. A bola bateu na trave. Não havia chance de defesa para Goycoechea. O placar continuaria empatado.

A torcida brasileira marcava presença e a cada toque de Maradona, um mar de vaias ecoava no estádio. Os primeiros 20 minutos de jogo foram um banho do Brasil, que era muito melhor, mas sofria para finalizar com real perigo. A Argentina tentava sempre um jogo mais direto, buscando Maradona para armar e Caniggia para avançar ao ataque.

Com o passar dos minutos, a Argentina esfriava o jogo e equilibrava o confronto. Mesmo assim, o Brasil continuou sendo melhor em campo. Em lance já no segundo tempo, Valdo lançou Careca na ponta esquerda e o centroavante, em velocidade, foi à linha de fundo e cruzou. Goycoechea tentou cortar, mas a bola foi para trás e a bola bateu na trave. Logo depois, Alemão, em um chute de fora da área, chutou forte e a bola bateu na trave e saiu. Careca ainda teria outra chance, em uma cabeçada após cruzamento de Muller, mas a bola passou rente ao travessão.

A Argentina tentou pelo meio, com Caniggia vindo buscar a bola, aos 34 minutos, e trabalhando com Burruchaga, que tabelou com o atacante. A defesa brasileira se abriu e, por pouco, Caniggia não consegue uma finalização limpa. Ricardo Gomes impediu, mas o espaço apareceu. Gomes foi muito preciso para cortar, mas foi por muito pouco. A defesa tinha se desorganizado por um momento com a movimentação do atacante argentino.

Maradona mal tinha espaço para respirar. Com ele, porém, qualquer espaço, mesmo pouco, pode se tornar significativo. Aos 35 minutos do segundo tempo, ele recebeu dentro do círculo central, ainda no campo defensivo. Ele só tinha um jogador à sua frente, mas foi só segurar a bola por poucos segundos que ele já estava cercado. Rapidamente, o camisa 10 deu um corte seco em Alemão, Dunga tentou um carrinho, mas o argentino escapou.

O meio-campo ficou para trás. Maradona estava com a bola dominada, de frente para a defesa brasileira. O time estava posicionado, com Branco fechando pelo lado esquerdo, os três zagueiros ainda na jogada e Caniggia aberto pelo lado direito. Um dos zagueiros saiu para combater Maradona. Foi vencido com facilidade, em velocidade, com o meia canhoto conduzindo a bola. Uma vez vencido o primeiro, o segundo já cercava e o terceiro estava na sobra. Parecia impossível que o craque passasse por todos eles, com Branco ainda chegando para combater.

Só que não era preciso. Maradona sabia que todos tinham vindo para cima dele. A defesa brasileira, que tinha muitos jogadores, se fechou sobre ele. Estavam quatro jogadores ao seu redor, desesperados para impedir que ele fosse batendo um por um dos marcadores, como tinha feito tantas vezes na Copa do Mundo anterior. Como fez de modo brilhante contra a Inglaterra no México. Como fazia com uma frequência fenomenal no Napoli, ali na mesma Itália, tornando o seu time concorrente ao título da poderosa Juventus, dona daquele estádio em Turim onde jogavam Brasil e Argentina.

Com o pé direito, Maradona encontrou Caniggia. Ele, que começou a jogada aberto pela direita, tinha se movimentado mais uma vez, como tinha feito no lance anterior. Confundiu a defesa. Com Maradona sendo a grande preocupação dos brasileiros, ele sobrou livre, enquanto os quatro brasileiros só tinham olhos para o capitão argentino. Ele recebeu pelo meio, com um tapete vermelho pelo centro da defesa brasileira, onde normalmente há muita marcação.

De frente para Taffarel, Caniggia dançou, ameaçando, driblando o goleiro brasileiro e, com o gol vazio, só tocou para o fundo da rede. Saiu comemorando. Imediatamente o desânimo bateu nos brasileiros. Eles tinham sido melhores até ali, tinham jogado mais, criado mais chances, chegado mais perto de marcar. Mas não marcou. E viu uma jogada de Maradona colocar tudo a perder.

O nervosismo era tanto que o Brasil deu a saída e perdeu a bola em segundos. Os argentinos estavam em uma posição confortável, tocando sem pressa. Lazaroni tratou de chamar Renato Gaúcho para entrar imediatamente. O atacante foi reserva durante toda a Copa. Silas também estava pronto para entrar. Faltavam poucos minutos para o fim do jogo.

As coisas se complicaram muito mais ainda. Aos 37 minutos, Basualdo viu um buraco na defesa brasileira, que estava adiantada, e correu por ali. Ele tinha campo aberto, uma avenida. Avançou, em velocidade, e Ricardo Gomes, capitão do time, desesperado, deu um carrinho violento. Tomou o cartão vermelho, justamente. A situação complicava de vez.

Alemão deixou o campo e entrou Renato Gaúcho. Saiu também Mauro Galvão e entrou Silas. O Brasil começou o jogo com três zagueiros, mas a essa altura, perdendo o jogo, com 39 minutos do segundo tempo, tinha só um, Ricardo Rocha, com Jorginho e Branco recuando para laterais. Na cobrança de falta, Maradona cobrou com muito perigo e Taffarel fez uma grande defesa.

Os argentinos gastavam o tempo e o Brasil sufocava. O desespero já acontecia no lado brasileiro, que sentia a classificação escorrer pelas mãos. Ou pelos pés imprecisos de seus atacantes, que desperdiçaram as chances que tiveram. Desequilibrado, em campo e nas emoções, o Brasil via os minutos passarem em meios a passes mal feitos e lançamentos sem muita direção.

Em um lançamento longo, a grande chance do Brasil de empatar. A bola veio do campo de defesa e a zaga argentina afastou mal, com um toque na bola para cima, que foi para trás. A bola caiu nos pés de Muller, livre nas costas da defesa. A reação do camisa 15 do Brasil foi um retrato daquele momento da seleção brasileira. Ele poderia ter dominado, mas olhando para a bola, finalizou do jeito que ela veio e errou completamente o gol, em um chute que ele furou e pegou mal na bola. Uma chance de ouro que foi desperdiçada.

O Brasil não tinha jogadas, só desespero. A Argentina não tinha qualquer pressa. Enrolava em todas as bolas. O Brasil dava chutões para frente buscando achar uma bola. Nada mais aconteceu. A Argentina de Maradona viu a melhor atuação do Brasil na Copa. Mesmo assim, eliminou o rival e iria para as quartas de final. Mesmo melhor, tecnicamente e em campo, o Brasil foi eliminado. Um time que diante das dificuldades, sofreu em todos os jogos. Até que enfrentou um gênio. E contra um rival como a Argentina, não se pode desperdiçar chances assim.

Assista ao jogo completo (clique para assistir direto no Youtube):

Os argentinos valorizaram muito a vitória e a dificuldade de se vencer o Brasil. “Para mim, foi uma final antecipada', disse o técnico Carlos Bilardo, logo depois da partida. O craque do time, Diego Maradona, ainda disse, de forma sincera: “O Brasil merecia ganhar, mas o futebol é assim'.

O camisa 10, melhor do mundo, badalado, continuou. “O mérito do gol é do Caniggia. O passe é fácil de ser feito, o difícil é a conclusão', afirmou Maradona. Humildade de quem decidiu o lance com a sua jogada, carregando a bola desde o meio-campo e abrindo os caminhos para que Caniggia, inteligente na sua movimentação e aproveitando o foco da atenção no companheiro, se desmarcou.

Um dos pontos críticos antes do jogo era a condição física de Maradona. O jogador disse, com todas as letras, que estava sentindo muitas dores, mas que iria jogar. “A Argentina não jogou como pode jogar, mas jogou de acordo com a condição em que estavam seus jogadores', analisou Bilardo.

Como era de se esperar, a opção de Lazaroni de se contrapor ao que foi o Brasil de 1982 e 1986 cobraria um preço. E as críticas pelo estilo de jogo foram duras. Na Folha de S. Paulo, o então editor do caderno de Esportes, Flavio Gomes, escreveu: “Seleção do ‘futebol-nada’ deve ser esquecida já a partir de hoje'.

O texto era duro com o treinador, que batia no peito com um esquema que considerava ser moderno para o futebol brasileiro. “Um time educado só para defender não poderia ter ido mais longe. A seleção brasileira mais sem graça dos últimos tempos cai no esquecimento a partir de hoje e deixa como única marca a incapacidade de fazer gols, característica que vem sendo cultivada há um ano. O time empolgou tão pouco que nem é o caso de se discutir se o técnico estava ou não agindo de forma correta ao optar por dois atacantes – a maioria dos times faz isso. Mas a seleção brasileira de 1990 foi um time que abdicou de jogar futebol – o que a maioria das equipes ainda tenta fazer'.

“O pragmatismo de Sebastião Lazaroni faz sentido, mas só é defensável quando dá resultado. Da forma como tudo terminou ontem, os quatro jogos do Brasil na Copa da Itália passam para a história como exemplos de mediocridade, do ‘futebol-nada’, do ‘futebol-sem-resultados’, na verdade. Em quatro partidas, três delas terminaram com 1 x 0 no placar, um sinal de pobreza esportiva. A seleção brasileira de 1990 foi um time muito chato de se ver jogar', dizia ainda o texto.

Uma das expressões mais usadas para descrever a seleção brasileira na Copa de 90 é “Era Dunga'. O jogador ficaria marcado, de forma que criou um ranço enorme que parece ter ficado eternamente. O Jornal do Brasil relata que a Seleção fez o seu melhor jogo na Copa.

“Em sua melhor atuação na Copa do Mundo, a seleção brasileira perdeu da Argentina, por 1 a 0, ontem, no Estádio Delle Alpi, de Turim, e foi eliminada da competição. O time passou a semana se preparando para evitar lançamentos de Maradona a Caniggia e, num único descuido, foi derrotado exatamente na jogada para a qual tanto se preveniu', relata o jornal.

Em outro trecho, o texto diz: “O talento sepultou a Era Dunga, decretada 35 dias antes pelo treinador'. Este é um detalhe interessante e nem sempre lembrado: quem criou a alcunha foi o Jornal do Brasil a partir da própria fala de Lazaroni, durante a preparação do Brasil para a Copa do Mundo. Quem escreveu o texto foi Cláudio Arreguy, que usou as palavras de Lazaroni para determinar que aquela era que o técnico tinha aberto se fechou depois de apenas 35 dias.

No dia 21 de maio de 1990, o Jornal do Brasil relatava a chegada do Brasil a Gubbio, na Itália, para se preparar para o Mundial. “Em sua primeira declaração na chegada da seleção do Brasil a Gubbio (Itália), o técnico Sebastião Lazaroni decretou o início da era Dunga no futebol. O meio campo de seus sonhos é, segundo ele, o símbolo de nova mentalidade nesse esporte, que a arte e o talento, características tradicionais do jogo brasileiro, são coisas do passado', diz a matéria de capa do Jornal do Brasil.

No caderno de esportes do Jornal do Brasil, a manchete repetia o que a capa já tinha anunciado. “Lazaroni decreta a era de Dunga'. As palavras do técnico eram quase um prenúncio que o talento tinha morrido. “Hoje, não se encontra mais jogadores com o potencial e o talento de Didi, Gérson, Tostão, Nílton Santos e tantos outros artistas. Pior ainda, não vamos ter mais gênios como Pelé e Garrincha. Depois que ficamos sem essas e outras estrelas do mesmo nível, não conseguimos mais ganhar uma Copa', explicou o técnico.

“Temos que ser realistas. No futebol moderno, todos estão competindo. Existe um equilíbrio de forças. Sendo assim, a busca pela bola passou a ser fundamental. Time que não luta não chega a uma final. Tirando isso como base, queremos fazer da seleção um time de competição. Brigando na retomada de bola. Não deixando o adversário progredir. Quando a bola for nossa, aí sim, podemos usar o nosso talento. Ainda temos jogadores melhores que os outros. Se isso funcionar certo, vamos fazer a final em Roma, se Deus quiser', disse ainda Lazaroni.

A avaliação de Lazaroni parece anacrônica com o próprio futebol que vimos e vemos depois. Claro, o tempo nos permite ver que aquela mesma seleção de 1990 podia não ter um Pelé, mas tinha craques. Careca é um dos grandes centroavantes da história do futebol brasileiro. Bebeto era outro do panteão dos craques e ainda tinha Romário, um gênio, mas que sofreu com as lesões naquela Copa. A defesa tinha um dos melhores elencos de todos os tempos do Brasil, com Aldair na reserva, Ricardo Gomes, Ricardo Rocha e Mauro Galvão, além de Mozer no banco. Jorginho, na direita, é um dos melhores laterais do Brasil na história.

O talento existia no Brasil e o discurso catastrofista de Lazaroni soa como uma justificativa para usar uma forma de jogar que ele quis, ou que acreditou que fosse melhor. A justificativa filosófica é determinista demais ao dizer que não haverão mais craques daquele nível. O Brasil teve, depois de Romário, ainda Ronaldo, Rivaldo, Kaká, Ronaldinho Gaúcho, só para ficar naqueles que ganharam o prêmio de melhor do mundo. O talento continuou existindo, entrando na galeria dos melhores, escrevendo uma história rica.

“Trinta e cinco dias. Foi o tempo de duração da mais curta época do futebol brasileiro: a Era Dunga, que traduz – mais que a elegia a um jogador esforçado – uma filosofia medrosa e covarde de jogo, morreu e foi sepultada ontem, no campo do Estádio Delle Alpi, de Turim', diz o texto de Cláudio Arreguy, no Jornal do Brasil. Dunga pode não ter gostado, mas o texto trazia algo que dizia muito mais respeito ao técnico, que usou essa descrição catastrofista do futebol brasileiro e usou o volante como exemplo, do que em relação ao jogador, que tinha suas qualidades.

Tanto que Arreguy reconhece o esforço do jogador, que fez uma boa Copa. “Até que Dunga, o ícone dessa nova fase preconizada no dia 20 de maio (data da chegada brasileira à Itália), pelo delírio de Sebastião Lazaroni, futuro treinador da Fiorentina, fez sua parte. Lutou, correu, deu seis incontáveis carrinhos, suou e até premiou seu esforço com uma bola na trave. Ele não tem culpa em ver-se transformado em símbolo de algo que sequer existiu direito, que não passou de um embrião, de um equívoco, que trai a tradição do futebol brasileiro'.

“Cinco semanas. Foi o alcance da Era Dunga. Nascido sob a alegação de que mais vale jogar feio e ganhar, que atuar bonito e perder. Esse monstrengo decretado por Lazaroni acabou castiago ao sair mais cedo de uma Copa que a seleção de 1982, cujo exemplo o treinador sempre invocou, em defesa de sua tese defensivista', escreveu Arreguy.

“A era Dunga foi um pesadelo que adiou por mais quatro anos o sonho do tetra. E que vai embora sem deixar saudades. Ao contrário da seleção de 82, que jogava bonito, para frente. Só futebol feio também não ganha Copa. O talento, sim. Ontem, no Dele Alpi, ele estava em campo com a camisa 10. Mas do outro lado', finaliza o texto.

João Saldanha era cronista do Jornal do Brasil na época da Copa e estava na Itália para acompanhar aquele Mundial. Direto de Roma, o colunista foi muito crítico com o discurso vazio de que tudo que está sendo feito é parte de algo maior. Um trabalho.

“Sim, sim, dominamos o jogo. E daí? Quem vai fazer o gol? A gente grita, berra, grita e berra, e a resposta é demagógica, sem conteúdo, sem nada: está sendo feito um TRABALHO!!! Um TRABALHO!!! Um TRABALHO!… é, talvez para a próxima Copa. E a entourage dos vendedores de anúncios, sempre tão pródiga em argumentos, shows, bundas e filmezinhos de publicidade berrando quem seu poderia permite, limpando o caminho para as mazelas de nosso futebol', contesta Saldanha.

O fim de uma Copa é sempre um momento triste. Romário, que sequer esteve no banco no jogo da eliminação, foi enfático ao falar sobre sua participação na Copa. “Pode anotar: esta foi a minha primeira e última Copa”, disse Romário à Folha de S. Paulo depois de entrar no ônibus, ao lado de Bebeto. “Quatro anos é muito tempo”.

O texto ainda projetava o futuro. “A dupla poderá ser titular do Brasil na Copa de 1994, nos EUA. Bebeto, na última sexta-feira, chegou a terminar um treino falando no tema. ‘Nós estaremos juntos em 94’, disse, ao ser perguntado quando voltaria a formar dupla com Romário”, afirma o texto na Folha. Para nossa sorte, Romário jogaria, sim, mais uma Copa.

O sonho do tetra ficou mesmo para 94. Mas aí já é outra história. Aliás, já contamos aqui, no Especial sobre a Copa 94. Vale conferir.



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