Que tal adiar a Páscoa para outubro?

| COZINHA BRUTA/MARCOS NOGUEIRA


“Coelhinho da Páscoa, que trazes para mim? Quarentena, álcool em gel e uma máscara assim” (Suzanne Jutzeler/Pixabay)

Esta será a Páscoa mais estranha das nossas vidas. Da minha vida, pelo menos.

Não me lembro de ter passado a Páscoa sozinho. Longe da família, certamente passei –em 1992, quando brincava de imigrante ilegal em Londres–, mas não tenho registro mental do evento. Deve ter sido deprimente, como foi a viagem inteira.

Por mais que eu renegue o berço católico, sempre bati ponto nos almoços de Páscoa da minha mãe. Dona Ana preparava um respeitável bacalhau ao forno.

É uma distorção da tradição, corriqueira no Brasil: a Páscoa deveria marcar a volta da carne à mesa, simbolizando a fartura. Uma pequena orgia depois de longa abstinência.

O peixe é parte da expiação quaresmal, que atinge o ápice na Sexta-Feira da Paixão. Mas somos lusos de espírito. Aqui bacalhau é vida, não flagelo.

De qualquer forma, tais almoços eram reuniões familiares razoavelmente divertidas. Tínhamos vinho, chocolate e uma briga que quase sempre resultava na saída intempestiva da parte ofendida. Já bati muito aquela porta da rua Paulo Orozimbo. Chanchada de quinta categoria, tenho saudade.

Meu pai morreu, minha mãe ficou senil, e os almoços de Páscoa se tornaram cada vez mais, hum, digamos, intimistas. A grande cisma de 2018 acentuou o minimalismo pascal lá em casa.

Nem meus devaneios mais doentios conseguiriam desenhar a situação que enfrentamos em 2020.

Simplesmente não faz sentido comemorar a Páscoa agora.

Você sabe exatamente o que significa essa data? Eu tampouco, mas algumas pistas me levam a crer que não é o louvor ao chocolate.

A Páscoa cristã celebra a ressurreição de Jesus. Ela agregou elementos da Páscoa judaica –Pessach–, referente ao êxodo dos hebreus do cativeiro no Egito. Esta, por sua vez, incorporou festas primaveris mais antigas, de outros povos do Oriente Médio.

Na Europa, a Páscoa adaptou rituais germânicos, como o culto à deusa Ostara, de cujo nome deriva a palavra “easter' –“Páscoa', em inglês. Um dos símbolos do festim bárbaro era o coelho.

Em comum, todos esses festivais celebram a travessia do inferno. O renascimento. A volta à vida depois de um perrengue horrendo. Fertilidade. Mais comida. Primavera.

Isso no hemisfério norte. O calendário das festas cristãs é um copy + paste da observação pagã da natureza. Páscoa quando chega a primavera, Halloween –aqui, Finados– quando o inverno se aproxima.

No Brasil e no resto do mundo austral, é tudo invertido. Isso nunca ficou tão óbvio quanto agora.

Estamos mergulhando no inverno mais difícil de nossas existências. Era o caso de fazer algo como o Halloween –preces para que a morte seja branda conosco. O jejum picareta do Bolsonaro e dos abutres pentecostais não conta.

A Páscoa poderia ficar para outubro, em plena primavera, época em que –dizem– a peste nos dará trégua.

Fique em casa. Não cutuque o nariz. Lave as mãos. Cuide de seus velhos.

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