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'O raio caiu na minha casa. Pode ser na casa de qualquer um'
No dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 10 mil mortos pelo novo coronavírus, famílias relatam ao Estado histórias por trás do número de vítimas da pandemia
Na família, ninguém escapou da covid-19. A mãe Maristela Andreoli, de 58 anos, foi a primeira a manifestar sintoma: uma dor forte lhe martelava a cabeça sem parar. Logo depois os filhos começaram a tossir, perderam olfato, não sentiam mais o gosto da comida. Até febre e dor no corpo a mais nova teve. Ajudando a cuidar de todos, o pai e empresário Carlos Eduardo Andreoli, de 59, era diabético e adoeceu por último. 'Meu marido saiu de casa bem, para tomar insulina, e nunca mais voltou.'
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No dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 10 mil mortos pelo novo coronavírus, famílias relatam ao Estado histórias por trás do número de vítimas da pandemia. Em comum, demonstram preocupação com desrespeitos às medidas de isolamento social no País e descrevem o comportamento de uma doença traiçoeira que, agora, as obriga a lidar com a ausência de pessoas amadas.
Maristela e Andreoli, por exemplo, casaram antes dos 20 anos, tiveram dois filhos e mantinham uma empresa de eventos em Santo André, no ABC paulista, onde a família mora. Passaram 40 anos unidos. 'Foi a melhor pessoa que eu poderia conhecer, tinha a essência de gente boa, sabe? Um homem muito querido e generoso', diz a mulher.
Segundo Maristela, os sinais de coronavírus começaram a aparecer no fim de março, dias após o governador João Doria (PSDB) decretar quarentena em São Paulo. 'Todos da família pegamos juntos, mas com sintomas distintos', relata. 'A gente não tinha feito nenhuma viagem antes e estava ficando no apartamento. Acredito que pegamos dentro do prédio mesmo.'
Aparentemente, Andreoli estava bem e era o único a não demonstrar sintomas, exceto um pouco de febre que logo passou, diz a mulher. 'Ele estava cuidando de nós três', relata. 'Apesar de ter diabetes, ele controlava com remédio e alimentação. Na segunda (23), viu que a glicemia estava alta. Como na quarta (25) continuou subindo, disse que ia ao hospital depois do almoço, para aplicar insulina, e já voltava.'
Na unidade de atendimento, a equipe médica mediu a saturação de oxigênio no sangue de Andreoli e constatou que estava em 85% -- em pessoas saudáveis o índice fica acima de 95%. Após tomografia de tórax, também perceberam lesões em 75% dos pulmões. 'O quadro era grave, mas meu marido não se sentia mal dessa forma', diz Maristela. 'Falei com ele por telefone, ele dizia que estava só esperando para ir embora.'
No mesmo dia, o empresário foi entubado e transferido para um hospital na cidade de São Paulo, reservado pelo plano de saúde para casos suspeitos de covid-19. Na sexta-feira, 27, Andreoli não resistiu. Por coronavírus, Maristela também chegou a ficar três dias internada com catéter de alto fluxo, aparelho não-invasivo que aumenta a oferta de oxigênio, mas se curou da doença. O filho, de 30 anos, e a filha, de 23, se recuperaram em casa.
Seis semanas após o sepultamento, que só pôde ser acompanhado à distância pela família, Maristela diz que vive a morte de Andreoli diariamente. 'A gente não viu ainda nossos familiares, não podemos abraçar ou ser consolados. Estamos fechados dentro de casa, com todas as lembranças do meu marido, o tempo inteiro. É como se ele tivesse morrido ontem. Todos os dias são iguaizinhos, descreve.'
Mesmo com a renda interrompida por causa do fechamento de serviços não essenciais, Maristela diz que o isolamento só deve ser flexibilizado quando o número de casos começar a cair. 'É muito importante parar essa roleta-russa. A minha família não procurou, mas o raio caiu na minha casa. Pode ser na casa de qualquer um. Ninguém está livre.'
'O que me revolta, hoje, é que estamos esticando esse assunto porque boa parte das pessoas não está nem aí para os outros. Se tivéssemos feito o isolamento direitinho desde o começo, nos resguardando, já poderíamos estar retomando nosso dia a dia', afirma. 'Só depende da gente assumir que é nossa responsabilidade parar de transmitir a doença. Por causa dessas pessoas, nós estamos sofrendo e pagando uma conta muito alta.'
O sepultamento não demorou mais do que 10 minutos. No cemitério em Paulista, no Grande Recife, o empresário Aécio Prado Júnior, de 33 anos, estava sozinho ao lado do caixão do pai, José Aécio do Prado, de 80, vítima da covid-19. 'Tive de transmitir pelo celular e ficar mandando foto para a minha família: como estava a coroa de flor, gravar o funcionário fechando o túmulo... Infelizmente, tive de criar registro daquilo que, normalmente, ninguém quer ficar lembrando', descreve.
Segundo o empresário, os familiares temiam que o corpo acabasse enterrado em vala comum por causa da pandemia. 'Como era um caso de coronavírus, não teve velório. A família não pôde acompanhar, dar as últimas palavras e prestar as honrarias', diz. 'Na hora, eu não conseguia pensar em nada. Só tinha de aguentar e fazer... Depois que sepultou, aí desabei.'
Ao procurar atendimento médico, Prado estava com a taxa de oxigenação em 70% e apresentava lesões do tipo 'vidro fosco' nos dois pulmões, característica da covid-19. Entubado, precisou ser submetido a hemodiálise e passou seis dias na unidade de terapia intensiva (UTI) de um hospital público do Recife. Em grupo de risco por causa da idade, também era portador da Doença de Parkinson. Ele faleceu no dia 29 de abril - exatos 30 dias após comemorar aniversário.
O filho descreve, no entanto, que Prado era um homem ativo, continuava dirigindo e costumava fazer feira para a casa. Proprietário de uma empresa de material elétrico, também administrava o negócio havia 50 anos.
'Foi tudo muito rápido. Meus pais já estavam de quarentena há quase um mês, mas eventualmente tinham de sair para algum lugar para resolver questões essenciais', conta o filho. 'Começou com um resfriado, como ele sempre tinha. Depois apresentou febre e começou a ficar molinho, mas não espirrava, não tossia e só se queixou de falta de ar no dia da internação.'
Para Prado Júnior, o coronavírus é uma 'doença traiçoeira'. 'Com são sintomas de uma gripe comum, a gente fica no dilema se é melhor levar ou não ao hospital, por causa do risco de infecção. Nesse tempo todo, meu pai estava lúcido e dizia: 'Se vocês me tirarem de casa, é o mesmo que me matar'.'
Prado Júnior diz ter percebido muito empenho de médicos e enfermeiros da linha de frente, mas que o principal problema era conseguir informações do paciente internado. 'Passei três dias para receber um boletim. Tinha gente que estava há uma semana sem notícia de parente', afirma. 'Os médico ligam para que as famílias não tenham de ir lá, mas passam 1 minuto falando, não dá para acalmar a angústia.'
'Só descobri que meu pai faleceu porque um amigo do meu primo estava de plantão, trabalhando lá. Foi às 18h55', relata. 'Eu tive de ligar para o hospital para confirmar, provavelmente só iam me informar no outro dia.'
No dia do falecimento, Prado Júnior notou aumento de ambulâncias chegando ao hospital. Paramentadas, equipes de saúde já carregavam doentes na maca da ambulância direto para a internação. 'Se fosse hoje, teria medo de ele não ser atendido e morrer no caminho.'
Desde então, o filho está cuidando da mãe, de 67 anos, que testou negativo para covid-19. Uma tia, vizinha de porta, também contraiu a doença, conta. 'Minha esposa tem asma e ficou sozinha em casa. Tenho medo por ela, pela minha mãe e pela minha irmã, que tem um marido enfermeiro', afirma. 'Estaríamos todos juntos em uma situação normal, mas temos de nos manter afastados.'
'A doença evolui muito rápido e tira o direito de a gente acompanhar aquele que está adoecido. Essa é a maior dor. Todos os cuidados devem ser tomados: o isolamento social, a esterilização dos objetos, a procura por orientação médica em caso de sintoma e por informações oficiais', diz Prado Júnior. 'A nível estadual ou federal, não estou vendo o governo fazer alguma coisa ou o número regredir. Só estou vendo as pessoas morrendo.'